segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A batalha pelos livros



Escola rural, duas séries para cada professora e as próprias e os alunos cuidando da merenda e da limpeza.
Ajudei a carregar muito balde de agua tirando de forma manual do poço, eu era o preferido, pois não deixava o balde cair e ficar dentro do poço. Também tinha uma turma para passar cera e lustrar a sala. A lustragem acabava virando uma seção de deslizamento e a professora tinha de intervir. Essa faxina geralmente acontecia nas ultimas horas de aula da sexta-feira.
Quanta a merenda todo dia dois alunos ou alunas dentre os maiores, da terceira ou quarta series, eram designados para cuidar desta parte. A “matéria” que não acompanhavam naquele dia tinha de copiar de um colega depois do recreio.
Ao passarmos para a terceira serie escapávamos dos puxões de orelha e das reguadas nas mãos com que a Irmã Demétria nos brindava em acompanhamento à descoberta dos primeiros signos linguísticos. Castigos físicos já eram proibidos naqueles idos da década de 80, mas, quem teria coragem de denunciar uma religiosa com quarenta anos de magistério?
Na terceira serie escapávamos à batina, aos safanões e as admoestações em ucraniano. Não deixou, porém de haver acontecimentos peculiares.
Acontece que, afora a cartilha de leitura obrigatória durante o ano, em acompanhamento as aulas, havíamos conhecido pouquíssimas leituras alternativas. Leitura livre, sem rédeas nem obrigações, que é o melhor que pode-se encontrar num espécime literário.
Chega-nos então um dia, ou melhor, chega até a escola, até a um canto de nossa sala de aula, mas não chega até nós, uma enorme caixa contendo uma centena de volumes coloridos, brilhantes, cheios de gravuras e de letras. Vão para o canto e ali ficam. Belos e intocáveis.
Ante nosso questionamento a jovem professora, esta não me recordo o nome, nos responde que não poderia nos liberar os livros sob pena de que poderíamos estraga-los.
Com muitas suplicas libera para um horário de leitura, mediante severa vigilância. Como, porém, sob esta docente não precisávamos temer o poder coercitivo da violência persistimos em suplicas para que nos emprestasse um volume por vez para lemos em casa.
Conseguimos também. Mediante assinatura e comprometimento de reembolso em caso de qualquer rasura ou estrago.
Lembro, daquela época, da leitura de Ziraldo, “menino maluquinho”, “o bicho da maça”.
Foi no ano de 1988, na Escola Municipal de Ensino Rural Ponte Alta, município de Prudentópolis, Paraná.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Ferramenta de luta


            Percorre a rua deserta torcendo com todas as forças para que assim continue. No beco escuro após muitos olhares de soslaio busca o local onde sabe um ponto cego das câmeras de segurança que vasculham toda a metrópole. Desaparece sob a tampa de um bueiro. Desce escadas.
Num pequeno local escuro e úmido encontra os outros já reunidos. Saúda-os e recebe suas saudações. Enquanto abre sua pasta sente os olhares ansiosos e a tensão de seus camaradas. Retira uma caixinha com marcas de bastante idade de entre um embrulho com panos. A tensão cresce. Respirações cada vez mais ofegantes. Aberta a caixa retira o objeto que é admirado com ares de sagrado.
- Pessoal, esta é uma caneta, diretamente do século XXI, vai ser de ajuda fundamental para nossa causa.
Todos observam o objeto, tubo que já fora transparente com marcas de quebradiço e tampa azul com marcas de mordida.
- Ajuda fundamental em nossa luta.
Emociona-se como os outros demasiadamente. Todos sabem que a comunicação digital, holográfica e outras formas tecnológicas é totalmente controlada pelo grupo gestor do sistema. Gráficas e impressões, mesmo as domésticas também são rigidamente vigiadas pelo robô central.
-Vamos tentar desenhar os bilhetes.
O trabalho é árduo, pois embora conheçam as letras ninguém do grupo nunca escreveu de forma manuscrita. E não podem deixar digitais no papel.
Após muito trabalho sai o primeiro manifesto. Reproduzi-lo já fica mais fácil e as cópias vão surgindo. Havendo certo número dividem e com recomendações de cuidados saem um a um.
Sai por ultimo e com o crescente da tensão vai à busca de alguma região de grande concentração de operários para lançar a voz de protesto e convocação a luta presente no bilhete.

Bananadina


         Um veículo Ford Cinza estaciona lentamente ao lado do frondoso pé de aroeira periquita, vidros escuros, lataria malcuidada com amassados e sujeiras bem presentes. Saem uma mulher de longos cabelos negros e vestes puídas.
         Segue uma criança sonolenta. Sua roupa esta toda embarreada e carrega em uma das mãos uma sacola, bem cheia, com frutas. Bananas. A sacola esta rasgando em alguns pontos e a senhora adverte bruscamente:
- Põem a mão por baixo que senão vai espalhar tudo pelo chão!
O motorista desembarca demonstrando tensão. Abre o porta-malas traseiro e alcança mais algumas sacolas lotadas com pencas e pencas do produto. Um cacho em fase de maturação vai ao ombro. No momento em que busca mais alguma coisa, no escuro, tateando o porta-malas mal iluminado, todos param.
Agentes armados saem de vários locais, os três cercados e recebendo voz de prisão.
Chega uma viatura e estaciona ao lado do local onde a família apavorada rende-se ao cerco brutal e intransponível. Descem da viatura. Mais agentes.
As sacolas são confiscadas e os adultos algemados.
-Pegamos um belo carregamento do produto.
-Meu pai... São agricultores moço, eu não sou traficante, nunca nem fumei, não sei nada dessas modas novas, não me prende não, minha família...
O homem detido, ainda mais apavorado, mas, tentando mostrar algum controle para segurar o choro da mulher e do filho, tenta argumentos.
-Nem me vem com frescura, vocês conhecem a lei, cultivo transporte e processamento estão proibidos. O uso tradicional na alimentação esta suspenso há dez anos. Malditos traficantes. A descoberta desta tal de “bananadina” por parte de crápulas como vocês... Nem vou argumentar com vagabundo.
A truculência do chefe da equipe demonstrada com gestos bruscos, empurrões; não falava, gritava:
-Chamem o Conselho Tutelar para levar o garoto. Quero dar uma trabalhada nestes dois.
O choro aumenta. O semblante do algemado passa a demonstrar sentimentos com raiva e desprezo.
-Por que os seus homens não param de devorar o produto e meus filhos não podem, seus cachorr... Um violento chute interrompe o discurso.
Saraivada de murros e chutes.
A criança desmaia e bate a cabeça na calçada. Ninguém liga. Nem mesmo a mãe, que, quase em estado de choque, grita ofensas e urra desesperada.
O produto já esta quase todo “destruído” pelos agentes. O comandante limpa o sangue das mãos, pega uma penca bem madurinha e adverte sua equipe:
-Guardem bem as cascas. Não podemos perder os indícios.
O homem e a mulher são recolhidos na viatura. Ela também apanhou bastante.
-E a criança?
-O Conselho Tutelar foi avisado. Deixa aí mesmo e eles que venham recolher.
-Meu turno esta terminando e eu quero passar a noite de Natal com minha família. Se não fosse de ultima hora esta apreensão teríamos torta de bananas.
Gargalhadas gerais e todos embarcam nas viaturas.
A criança, ainda desacordada, segue jogada na calçada. Na cabeça marcas rubras.
O rubro se espalha.
25-12-2198
Esta tudo consumado!

Boa Sorte


Apertava firmemente dentro do bolso a célula sebosa e amarotada. Os dois últimos reais de vinte milhões. Sem casa, sem carro e sem amigos. Deixara a velha Brasília, sua ultima aquisição, estuporada num poste esquinas atrás.
Flutuara da lotérica até em casa. Após o irreal da notícia lembra de todo o furdunço. Apostar, sempre apostara, mas nunca levara muito a sério. Mais um passatempo para ficar aguardando o sorteio, torcendo, fazendo planos mirabolantes e irreais. Por isso que não curtia as loterias instantâneas.
         Alegria, euforia, família, amigos chegando-se de todos os lados.                      Veio um primo do Pará, um colega de pré-escola lhe apareceu com um milhão de ideias infalíveis e um monte de garotas (adolescentes, adultas e até varias velhinhas) passaram a lhe dedicar a maior moral.
         Nos mergulhos ainda das comemorações o casamento de mais de dez anos foi o primeiro a ruir frente aos excessos. Mediante uma polpuda mesada, é claro.
         Festas, bebedeiras, casas de tolerância em profusão.
Da casinha minúscula e alugada na Vila Ibanez para uma magnifica cobertura no centro.
Largou-se de vez na perdição. Comprou um bar e uma metalúrgica. Na metalúrgica entrou apenas uma vez acompanhando o amigo vindo do Pará, o Carlos, que colocou como diretor geral. Do bar não saía nunca. Mas também precisou de uma gerente. Para não precisar esquentar a cabeça com bobagens.
Aproveitou e contratou, mediante teste do sofá, a Carlinha, a mais linda das garotas do colegial, que sempre fora seu sonho de consumo e, via de regra, nunca antes tomara conhecimento de sua existência.
Enquanto a loira escultural desfilava as menores vestes possíveis ante os clientes estupefatos embriagava ideias junto aos amigos que não paravam de aumentar assustadoramente.
Embalado pela visão da pista de bicicross, da rótula do Nacional e tendo o Parcão logo ao lado o PENCA’S “bombava”. O dinheiro, porém, mais saía do que entrava.
Patrocinou entidades beneficentes e culturais de boa e de má fé. Entrou até na diretoria de algumas. Vários partidos políticos começaram a lhe cantar também. Alheio a ideias e ideais filiou-se em um por puro instinto. O roxo e amarelo das bandeiras lhe agradava.
Como a executiva do partido era escolhida pelo tamanho da carteira do militante logo entrou para a direção do PLPC. A candidatura a vereador foi construída ao natural como muito esforço e muito desembolso.
    No PENCA’S e na metalúrgica era um ilustre visitante. A campanha lhe exigia ao máximo. Compensava levando os excessos também ao máximo. Além das licitas enveredou para as drogas ilícitas. Comprava maconha no Parcão e cocaína na Vila Kerber. Ninguém lhe incomodava.
A campanha era coordenada por pessoas com experiência nas lides políticas que lhe colocaram as necessidades de uma carreira vitoriosa:
- Tem de gastar uns duzentos mil. Muito santinho, banner, adesivo. Uns trinta carros de som. E uns cinquenta mil só para a compra de votos. Que senão não se elege.
- Se você esta dizendo... Mas isso não é ilegal.
- É ilegal, mas todo mundo faz. Não tem como escapar. Confie em mim. Vou administrar muito bem sua grana.
O coordenador de sua campanha era de absoluta confiança. O Carlos é claro, seu velho amigo de infância, um sujeito que nunca lhe enganaria.
A correria era grande. Um rapaz contratado pelo Carlos chegava à frente com a camionete cheia de sacolão e depois que ele havia saído entrava o candidato para falar para o povo todo sorrisos que se reunia nos diversos locais das vilas mais carentes da cidade. Ao final da palestra todos saiam satisfeitos e carregados.

No final da campanha o Carlos solicitou uma grana extra.
- O pessoal tá querendo muita gorja. Vou ter de botar uns dois ou três de confiança distribuindo santinhos recheados com notas de cem.
No dia da votação, após cumprir seu dever cívico isolou-se em um sitio que comprara para momentos de desopilação. O Carlos acompanhava a apuração no centro e comandava a preparação da mega festa para a comemoração da vitória.
Não desgrudava o ouvido da radio Noroeste. Raiva do Madril que ficava enrolando e não divulgava os números mais rápido.
Seu nome sempre bem colocado foi caindo para a primeira suplência. E assim se manteve. Atônito não conseguia acreditar no que acontecera. Melhor, no que não acontecera. Ligou para o Carlos e ele não atendia. Depois o celular estava fora da área de cobertura.
Nos próximos dias além do sumiço do Carlos o inferno aumentou. Os pagamentos de gráfica e carro de som e tudo o mais não haviam sido feitos. Um monte de cabos eleitorais na porta do comitê querendo arrancar seu couro. O dinheiro da conta corrente da campanha sacado todo de uma vez pelo tesoureiro. Que era o Carlos, como sempre. Não restava nem um tostão.
Pagou tudo a tempo de descobrir a metalúrgica em situação falimentar. Vendeu a infraestrutura para pagar os salários em atraso e as dividas com fornecedores.
Para compensar as dores de cabeça aumentou as faras ao cubo.
Numa dessas a Carlinha convenceu-o a passar para ela a propriedade do PENCA’S.
Restavam mil reais, o apartamento e o carão importado. Vendeu tudo, comprou a fatídica Brasília, e foi morar num quarto de hotel daqueles de péssima reputação, perto da Hidrofer. Profusão de prostitutas e baratas. Comia ambas.
Ao finalizar dos trocados foi habitar o veículo.
Ao acaba-lo contra o poste restou-lhe a rua e os dois reais.
Entrou no shopping do Real e comprou duas de canha.
Sentado nos bancos próximo as Aguas Dançantes alheava-se a tudo. Dividia com seus novos amigos. Os vagabundos habitantes da praça. Com a mesma condição deles agora, porém, um desassossego muito maior.
- Com o tempo te habituas. Para tudo serve o condicionamento – filosofa de um dos novos colegas.
De repente surge o Carlos todo esbaforido a sua frente, gritando e gesticulando animadamente.
Não encontra forças para esbofeteá-lo e ouve:
- Cara temos de fazer tua prestação de cotas. Tua sorte virou meu amigo. Desculpa qualquer mal feito, mas temos de correr. Tu não soube da morte do Mané Tiburcio ontem? Tu vai ser vereador cara. Da cá um abraço no teu futuro assessor.